marcos s. jank
Um dos temas mais sensveis nas relaes comerciais entre o Brasil e a Unio Europia (UE) o o ao mercado europeu de carne de aves. A posio europia nas negociaes da Rodada de Doha se tem centrado neste produto e na carne bovina. Atualmente, a UE concede livre o ao seu mercado para nfimas 29 mil toneladas de carne de frango e peru distribudas em seis cotas de importao. Isso representa 0,4% do seu consumo total de 11 milhes de toneladas. Qualquer importao do produto in natura que ultrae o volume gravada com tarifas extracota e salvaguardas especiais que representam, juntas, uma taxao de 1.450 por tonelada, equivalente a cerca de 100% do preo do produto! Um exemplo clssico de acumulao de mltiplos instrumentos de proteo sobre uma mesma linha tarifria.
Nas negociaes de Doha a UE props, sem enrubescer, a fabulosa expanso de cotas de 36 mil toneladas. Informalmente, o negociador mencionou que poderia chegar ao volume de 100 mil toneladas, ou 2,5% do seu consumo domstico! Para se ter uma idia da insignificncia desse nmero, em 2005 o Brasil exportou quase 350 mil toneladas de carnes avcolas para a UE, sendo mais 60% do volume gravado com protees altssimas.
Em meados de 2003, os europeus tomaram a deciso unilateral de ampliar a proteo do setor. Na ocasio, o Brasil vinha exportando cerca de 150 mil toneladas de carne de frango salgada e congelada para processamento na indstria europia, sob uma tarifa de 15,4%. Os europeus decidiram mudar essa classificao jogando o frango salgado na categoria tarifria mais alta dos cortes sem sal, sujeito a uma tarifa de 1.024 por tonelada (70% do nosso atual preo FOB de exportao). O Brasil entrou com um contencioso na OMC - julgado no e confirmado no rgo de Apelao - que obrigou a UE a retomar os nveis de proteo anteriores.
S que a UE no baixou a guarda e entra, agora, com uma nova arbitrariedade contra o frango, amparada pelo famigerado artigo XXVIII do Gatt 1947, que permite a "desconsolidao tarifria". Ocorre que o sistema Gatt-OMC obriga os pases a notificarem as tarifas mximas aplicadas sobre seus produtos, tambm chamadas de tarifas consolidadas. Mas o referido artigo permite que qualquer membro altere estas tarifas desde que sejam conferidas "compensaes" aos pases prejudicados. Como dissemos, tradicionalmente a UE protegia os produtos in natura de aves (leia-se o produtor) com tarifas elevadssimas e cotas nfimas. J os cortes industrializados gozavam de tarifas consolidadas mais baixas, sem cotas. Diante de um mercado de carne in natura ultraprotegido e estagnado, as indstrias do Brasil e da Tailndia decidiram investir na agregao de valor com a exportao de cortes processados de frango e de peru para aquele continente, numa bem-sucedida estratgia de diversificao e adio de valor aos produtos exportados. Nossas exportaes nesta rubrica cresceram 350% entre 2000 e 2005. Em junho, a UE informou que vai "reconsolidar" as tarifas dos produtos industrializados de frango e peru nos mesmos nveis do produto in natura. Ou seja, Bruxelas foi tambm capturada pelo lobby da indstria local de processamento.
As importaes europias de carnes in natura e processadas da UE esto longe de ameaar os produtores e os exportadores europeus, j que elas representam, no total, menos de 5% do consumo. Neste momento, a nica alternativa que nos resta parece ser negociar cotas compensatrias, o que vai fatalmente "confinar" as nossas exportaes de cortes processados em nveis menores do que os embarques ocorridos no ano ado e muito abaixo do nosso potencial de expanso. Em outras palavras, graas a esta verdadeira peneira de "excees e escapes" chamada Sistema Gatt-OMC, a UE vai conseguir bloquear no s o crescimento, mas tambm a ainda incipiente adio de valor da nossa carne avcola, que ser submetida a um regime draconiano de cotas de importao.
Se, de um lado, a UE de fato reduziu seus subsdios domsticos, do outro, ela continua determinada a manter intacta a sua muralha medieval de protees de fronteira, cujos tijolos e argamassa so as megatarifas, as cotas de importao, as salvaguardas, as barreiras no-tarifrias (sanitrias, ambientais, etc.) e agora a reclassificao tarifria permitida pelo artigo XXVIII. Com essa medida a UE se utiliza dos absurdos "escapes" do sistema para limitar o o ao seu mercado de cortes processados de aves, com perdas futuras estimadas em US$ 100 milhes ao ano pelo Icone.
No bastasse essa m notcia, a prxima bola da vez poder ser a carne bovina, quando Bulgria e Romnia se integrarem UE e nos forarem a voltar mesa de negociao por conta das quase 100 mil toneladas exportadas para esses pases.
A elevao unilateral das tarifas de aves representa uma profunda deteriorao das relaes comerciais entre Brasil e UE, seja nas negociaes de Doha ou nas negociaes birregionais entre o Mercosul e a UE, que nosso governo afirmou retomar em breve. Os europeus gostam de afirmar que so os maiores importadores mundiais de produtos agropecurios e que seriam um mercado aberto e em expanso. Basta, porm, examinar a nossa pauta de exportaes para verificar que, numa dezena de produtos de importncia capital, a UE literalmente impede (sunos, acar e lcteos) ou limita fortemente (carne bovina, de aves, etanol, leo de soja, caf solvel, bananas e milho) a expanso das nossas exportaes. Que tipo de acordo multilateral ou birregional pode ser feito neste contexto?
A verdade que, apesar dos "estreitos laos" histricos, culturais e econmicos que nos unem Europa, o comrcio continua dominado pelo dilogo de surdos e por inacreditveis arbitrariedades ad hoc. Atitudes que am por cima do calor humano, afetividade e inteligncia de nossos povos.