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Os heris da resistncia 1k5y59

por Alma
06/07/2010 - 12:15
Tempos atrs, era costume das famlias rezar antes das refeies. Sim, rezar para agradecer o alimento recebido. Luiz Felipe Pond diz que muitos telogos, sejam eles judeus, cristos ou muulmanos afirmam que a nica teologia verdadeira aquela que agradece. Os americanos, estes porcos imperialistas, tm at um dia especial no ano para agradecer a Deus no s pela mesa farta sua frente, mas por tudo o que receberam. No custa lembrar, os perodos de colheita em toda a histria da humanidade sempre foram celebrados em festividades religiosas, como at hoje o caso das nossas festas juninas. Infelizmente, nos dias urbanos e de fast-food em que vivemos, comendo s vezes at de p, damos nossas refeies por garantidas. Nossas crianas acham que o leite nasce dentro da caixinha tetra-pak e o bife espontaneamente gerado em bandejas de isopor. Achamos que a comida vem do supermercado, que sempre estar ali, repleto de queijos j prontos, manteiga j batida, carne j desossada, frutas j cortadas, e saladas j lavadas, alm de todo o assortiment de guloseimas pr-fabricadas de composio indefinida prontas a garantir a nossa obesidade. No temos mais ideia do que o trabalho de plantar, colher, cuidar, ordenhar. E por incrvel que parea, nos esquecemos de agradecer tambm quem faz esse trabalho por ns. A histria de um produtor So produtores rurais, estes impressionantes personagens que entendem um pouco de terra, um pouco de gua, um pouco dos ventos e das chuvas, das plantas e dos animais, e ainda precisa entender de dinheiro. Vou falar de um Produtor Rural. H muito tempo seu pai lhe levou para aquelas paragens. O governo dizia para migrarem, para derrubarem a mata e assim teriam terras. Dormiam em casa de pau a pique, teto de palha e cho batido, lampio de querosene e fogo de lenha. Abriram mata, semearam e colheram. Criaram bois. Deu certo. Ele, que era menino, virou Produtor Rural. O Produtor Rural no estudou, fato, embora tenha feito todo o esforo do mundo para que seus filhos pudessem ir faculdade. Mas no ignorante. Conversa com gente nova, aprende coisas. Melhora sua plantao, compra mquinas. Usa adubos, sementes, insemina o gado. O que ele produz hoje na mesma fazenda com certeza bem mais do que seu pai produzia. Ele e outros, mesmo sem saber sustentam a economia de todo um pas. Mas anos depois aparece um fiscal do governo em suas terras. Diz que ele est ilegal porque plantou caf no morro e no pode. Aplica uma multa porque na beira do rio onde o boi bebe gua deveria estar cercado, e no “corguinho” que a na fazenda devia ter 15 metros de rvores dos dois lados, embora ele explicasse que quando foram para l ningum lhes falou dessas regras. Aparece outro fiscal, e lhe d multas porque ele deveria por banheiros para seus empregados l no meio da roa, como se ele algum dia tivesse tido esses luxos. E outra multa porque seu tratorista come sua marmita debaixo da rvore quando deveria ter um refeitrio para comer. Outro dia vem um outro rapaz estudado, e diz que seus bois deveriam ter brinco, e que cada uma deveria ter um documento de identidade. Diz que os europeus esto preocupados com isso e querem os brincos porque mais saudvel. O Produtor Rural no entende muito bem porque para ele mais saudvel que aquele boi seu que ou a vida ali no pasto no existe, e se pergunta se boi europeu tem aquela vida boa. Mas vai na dele e pe brinco em tudo. Depois lhe dizem que as regras mudaram, e o que ele fez precisa ser refeito. A aparece um outro cabeludo, com sotaque de gringo. Fala que quer preservar a biodiversidade, que o mundo todo est muito preocupado e diz que se ele plantar rvore um dia vai receber por aquilo. Mas quem da roa desconfia, e normalmente se pra fazer servio quer ver a cor do dinheiro antes. Ele pergunta ao moo se no pas dele tem muita mata, e ouve que no, e que por isso que ele devia plantar mais rvores ali. Uma moa toda arrumada diz que do supermercado, e vem falando coisas bonitas como paradigmas, sustentabilidade, mudanas climticas, e diz que o consumidor est muito preocupado, e lhe d um manual de regras pra seguir. Um outro rapaz de sandlia de couro e bolsa de tric diz que da ONG, e traz um calhamao de leis que o Produtor nem sabia que existiam. Diz que a sociedade est muito preocupada, porque quase todos os Produtores so ilegais e ele no deveria continuar assim. A aparece um doutor do Governo, diz que tem que zelar pelo bem do Pas e pela Constituio, e que o Produtor deve um papel e ajustar sua conduta, que ele no sabia que estava desajustada. E se ele no assina no pode mais vender nada para ningum. Uma outra moa, cara de sa, chega e fala que est muito preocupada l onde ela mora porque o clima do mundo est mudando, e ela diz que as vacas dele esto esquentando o mundo. O Produtor se espanta e d risada ao perguntar como. Um outro doutor, estudado, diz que a fazenda dele na verdade terra dos ndios, e que est preocupado com os ndios porque ns matamos quase todos eles, que eram os donos do Brasil. Tem ndios ali perto, j donos de bastante terra. O Produtor viu uma vez o governo construindo casas para os ndios, e dando cestas bsicas aos ndios dali. E viu o material de construo das casas sendo vendido na cidade, e as cestas trocadas por pinga. A aparece um padre, com uns ndices na mo. Diz que o produtor no produz o que est escrito ali, e que portanto a terra dele devia ser dada para quem precisa. O padre est muito preocupado com os excludos. O Produtor pergunta quem so os excludos, e reconhece ali um povo que nunca trabalhou em roa. Tem garom, ajudante de pedreiro, tem at funcionrio pblico. E ele v esse povo recebendo dinheiro do governo todo ms. E se pergunta se o excludo no ele que paga um monte de imposto e ainda tem que pagar escola para os filhos, seguro sade e ainda anda em estrada esburacada, sem receber dinheiro nenhum do governo de volta. O Padre volta com outro doutor, que quer que ele prove que um dia no ado o governo realmente fez um papel dizendo que aquela terra era do seu pai. O Produtor pensa que se o governo durante esse tempo todo cobrou impostos dele por aquela terra porque sabia que era dele, ou no? A o Produtor vai no banco, quer emprestar para investir e produzir mais, plantar rvore. E um gerente do banco, que diz que est muito preocupado com o planeta e o clima diz que s empresta se ele cumprir todo um outro livro de regras. O Produtor se pergunta se o dono do banco sabe se o dinheiro que est ali vem de drogas, de jogo, de corrupo de polticos, de venda de madeira ilegal. Mas se cala e desiste daquilo. Ento o Produtor vai dar uma volta na cidade. Ele v favelas nos morros de tudo quanto jeito, e depois v na TV que o morro desabou na chuva e um monte de gente morreu e se pergunta se o moo que disse que no podia plantar no morro tinha ido l ver aquilo. V um monte de esgoto sendo jogado no rio e se pergunta se o doutor que queria zelar pelo bem do Pas foi atrs de quem fazia aquilo. E v no jornal que o chefe do fiscal que lhe havia multado foi preso por trfico de madeira. Vai no supermercado, e em sua economia simples faz uma conta e v que o quilo de carne vendido ali custa quase dez vezes mais o que ele recebeu pelo boi, embora ele tenha ficado trs anos cuidando do bicho e o supermercado trs dias cuidando da bandejinha. E v o povo comprando o que mais barato mesmo, e se pergunta se tudo o que est ali segue as regras que a moa arrumada lhe deu para seguir. O Produtor comea a desconfiar que aquele povo todo preocupado que foi na sua fazenda est preocupado mais em justificar os prprios empregos uns aos outros. Todos tem trabalhos to bonitos, consultor disso, coordenador daquilo, empresa de governana, ONG de sustentabilidade, tem at uns cargos em ingls que ele nem sabe o que so. Ele do tempo em que voc sabia o que a pessoa fazia. Era o aougueiro, o peo, o padeiro, o sapateiro... Ento ele decide que no quer fazer mais nada daquilo. Chamam-no de turro, ignorante, reacionrio, desconfiado, atrasado. Dizem que ele no quer se adequar aos novos tempos, no entende como funciona o mundo, no liga para a natureza e nem para a sociedade. Logo ele que ou a vida aprendendo como a natureza funciona e que faz comida para esse povo todo. E o Produtor vai l para o seu fim de mundo, em uma estrada esburacada e esquecida, escutando no rdio que o copeiro do Palcio ganha R$ 9.000 reais por ms, e que mais algum havia sido pego com dinheiro na meia ou na cueca. Apesar de tudo continua produzindo. No, ns no agradecemos pela comida. Ns pegamos quem a produz e colocamos no cantinho da sala, ajoelhado no milho, com um chapu de burro na cabea. Ns pegamos o Produtor, lambuzamos ele de piche e jogamos penas de galinha em cima, fazendo-o perambular pelas ruas da cidade. Podemos tambm coloc-lo numa gaiola para que seja cuspido e apedrejado por quem ar. Ou, melhor ainda, vamos costurar uma Estrela de Davi nas roupas de todos eles, para podermos identific-los bem. Como esto quase todos na ilegalidade, poderemos coloc-los todos fechados em um campo de concentrao. Ento ser fcil tomar essas terras e a sim poderemos produzir como se deve, deixando o mato crescer, a Terra esfriar e todos os ndios e animais felizes na floresta. Resistncia Eu sempre tive um respeito nato por quem produz, simplesmente pelo herico ato de produzir. Hoje, meu respeito tambm pelo herico ato de resistir. Resistir a uma sociedade obcecada pelo controle da vida alheia em todos os aspectos. Resistir a uma relativizao de direitos bsicos de toda sociedade democrtica. Resistir ao despotismo estatal. Resistir ditadura de minorias. Resistir ao globalismo ecolgico. Resistir a uma Justia parcial. Resistir centralizao de poder. Resistir delegao de responsabilidades. Resistir em suma ao fascismo que se desenha em nosso futuro. Sei que luta inglria e que fatalmente a Resistncia cair. Mas tenho meu respeito declarado e minhas armas disposio da luta. E hoje rezo no s para agradecer o prato de comida minha frente, mas para pedir que ele continue aparecendo sempre.