Excelente a reportagem de Roldo Arruda, publicada no Estado tempos atrs, indica algo impossvel no cadastro de terras do pas: o somatrio de rea dos imveis rurais ultraa em 600 mil quilmetros quadrados a prpria superfcie do territrio nacional. A falha escandalosa e o assunto, antigo. m5039
Dele tratei ao apresentar, em 1989, minha tese, intitulada A Verdade da Terra, de doutorado em istrao na FGV-SP. Nela mostrei, modestamente, haver um resduo sujo nas estatsticas agrrias do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra).
Em outubro de 1985, o governo liderado por Jos Sarney acabara de lanar o Plano Nacional de Reforma Agrria, estabelecendo uma meta de beneficiar, em 15 anos, um contingente de 7,1 milhes de famlias, das quais 1,4 milho receberia seu pedao de terra at 1989. A empreitada exigia ousadia total. Reconquistada a democracia, porm, tudo parecia ser possvel.
O ponto de partida para o assentamento rural prometido residia no fabuloso estoque de terras dominado pelos latifndios. Estimava-se no Incra, que metade do territrio nacional, cerca de 410 milhes de hectares, estava ociosa. Terra de explorao que se transformaria em terra de trabalho, assim dizia o mais famoso slogan agrarista. Espetculo da iluso agrarista.
Deu, bvio, tudo errado. Ao final do governo Sarney, desapropriados mesmo havia sido apenas cerca de 8 milhes de hectares, distribudos entre pouco mais de 50 mil famlias. Centenas de processos dependiam de trmites burocrticos ou judiciais. Porm, ainda que todas as pendncias fossem de pronto resolvidas, menos de 1% da meta de assentamentos teria sido atingida. Fracassara redondamente a reforma agrria da Nova Repblica.
O fiasco foi creditado s foras conservadoras, comandadas pelos latifundirios. Participante ativo desse processo, como membro da equipe dirigente do Incra, em Braslia, no me convenci facilmente de tal argumento. Julguei que as objees polticas haviam sido superestimadas na explicao do ocorrido. O buraco estava mais embaixo.
Minha tese, que virou livro (A Tragdia da Terra, 1991), mostrou serem equivocadas as estatsticas cadastrais do Incra. Inexistia, na verdade, aquele fantstico volume de terras a serem desapropriadas. Tratava-se, isso sim, de enormes reas que, embora oficialmente declaradas ao rgo oficial, raramente eram localizadas na realidade. Denominei tais imveis de "latifndios fantasmas": amedrontavam a sociedade, mas s valiam no papel.
Tudo indicava ser a grilagem de terras responsvel pelos enganos. reas extensas eram registradas com documentao precria, para depois facilitar a sua venda. Noutros casos, antigas possesses haviam sido regularizadas, divididas, capitalizadas, mas permaneciam cadastradas como originalmente estavam. No se limpava o cadastro original. Em meu trabalho acadmico destaquei vrias dessas reas, com sua localizao e seu tamanho. Somente no em So Paulo identifiquei 11 "latifndios fantasmas", jamais encontrados nas vistorias in loco. O caos fundirio era certamente mais grave nas demais regies do pas, menos estabelecidas burocraticamente.
Essa a razo por que ainda hoje, conforme descobriu o jornalista Roldo Arruda, em 1.354 municpios brasileiros as terras cadastradas no Incra superam sua rea territorial. Ladrio, em Mato Grosso do Sul, puxa a lista da incongruncia fundiria: a soma de seus imveis rurais ultraa dez vezes a superfcie municipal. Nem mgica explica.
Minha concluso, formulada h 25 anos, foi chocante: as estatsticas enganadoras do Incra permitiram fabricar uma iluso - ainda persistente na sociedade - de que seria fcil fazer a reforma agrria, bastando "vontade poltica" para execut-la.
Quando publiquei minha tese de doutorado, que repercutiu em entrevista nas pginas amarelas da revista Veja, a esquerda dogmtica expulsou-me de sua turma. Tecnicamente, os entendidos pouco discordavam de mim. Mas achavam que, inoportunamente, eu dera munio famigerada "direita". Alguns me acusaram de capitular ante o latifndio. Bobagem.
Eu simplesmente defendia, como at hoje o fao, a ideia de que a modernizao capitalista da agricultura exigia uma reorientao nas ideias agrrias herdadas do ado colonialista, que cultivavam a utopia socialista. Nada de permanecer, como Dom Quixote, lutando contra quimeras. Cazuza cantava: "A tua piscina est cheia de ratos, tuas ideias no correspondem aos fatos" em "O Tempo no Para".
Muito se fez, desde ento, para aprimorar o sistema cadastral do Incra. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, medidas saneadoras - legislativas, jurdicas e istrativas - conseguiram deletar cerca de 90 milhes de hectares, comprovadamente grilados, especialmente no Norte. Mas nunca, verdadeiramente, o Incra enfrentou esse problema pra valer. Por motivos, lamentavelmente, ideolgicos.
Trazer credibilidade ao cadastro fundirio do pas pressupe modernizar o Incra. Carcomido pela velha ideologia, aparelhado por grupelhos polticos, tornou-se palco de disputas entre grupelhos, afugentando o profissionalismo que o projetou. Tornou-se burocratizado, lento. Os agricultores que o digam: um simples registro dos limites geogrficos da fazenda, referenciados por satlite, demora anos para ser concedido. Fora as notcias sobre propinas, que todos conhecem, mas receiam denunciar, temendo ser retaliados pelas mos dos invasores de terras.
Chegou a hora da verdade para o Incra. A histrica instituio no se pode contentar com essa inoperncia, caindo em descrdito por nem saber sequer quanto de terra o Brasil possui. Ou redescobre sua funo, empurrando a modernidade no campo, ou fecha as portas.