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Caboclo ativista 5s1733

por Xico Graziano
26/06/2013 - 17:39

Jos Batistela, octogenrio, personagem famoso em Araras (SP), minha terra natal, me escreveu dias atrs, logo aps a primeira das manifestaes de rua. Gente simples do interior, roceiro ainda por cima, o sitiante no conseguia entender direito a confuso existente na metrpole. "Contra o que, afinal, lutam esses jovens?" 6gk70

Senti-me, de cara, impotente para explicar o porqu daqueles acontecimentos. Eu prprio, temperado h tempos na selva de pedra, mal compreendia o sentido daquilo que testemunhara no centro de So Paulo. As ruas pareciam demonstrar uma complexa mistura de rebeldia, ideologia, oportunismo, esperana e temor sobre o futuro. No tive como responder, naquele momento, ao meu matuto conterrneo.

Na sequncia, conforme todos vimos, cresceram as eatas, ganhando o apoio popular, espalhando-se pelo pas. Surgida na reivindicao do transporte, aos poucos seu propsito mais amplo e difuso se delineou. As manifestaes, embora contaminadas por grupelhos bandidos, carregavam uma forte negao do sistema poltico. Os jovens, ficou claro, gritam por uma sociedade decente. Acorda, Brasil.

Mais esclarecido sobre o rumo do movimento, eu tomei coragem para retornar ao seu Z Batistela. Remeti a ele, em meu amparo, um apanhado de opinies. Igncio de Loyola Brando, escritor dos melhores, disse que nos nibus as pessoas viajam qual "gado amontoado", mas os protestos eram "contra a vida miservel, expressam o saco cheio". Fernando Henrique Cardoso argumentou que as razes se encontram "na carestia, na m qualidade dos servios pblicos, na corrupo, no desencanto da juventude frente ao futuro". Demtrio Magnoli, socilogo da USP, concluiu que as pessoas esto "fartas do governo e da oposio, da corrupo e da impunidade, da soberba e do descaso". Opinies abalizadas.

Traduzi assim essa gritaria que anda assustando a Nao. Na briga contra o valor da agem dos nibus, claramente se encontra a frustrao da juventude acerca dos destinos polticos no Brasil, a insatisfao contra a podrido do poder. Os jovens parecem se sentir desdenhados, esquecidos e humilhados pela poltica degradante, corrupta e falsa, que abominam. No pas do futebol, dos estdios que custam os olhos da cara, nunca sobra recurso para melhorar a vergonha da sade, a tristeza do ensino fundamental, a tragdia da segurana pblica.

Calejado no trato da terra desde quando os colonos italianos para c vieram cuidar de cafezal, por mais que eu me esforasse para explicar as coisas, seu Z Batistela mostrava-se ainda ensimesmado. Compreensivelmente, me retrucou. Ele sente l na roa o desencanto da sociedade brasileira com a poltica velhaca instalada na Repblica, as promessas mentirosas, a lambana. Mas por que, de repente, a boiada estourou?

No fcil explicar a profunda transformao, global, que tem sofrido a democracia representativa na era da comunicao digital. margem dos partidos, at mesmo contra eles, as redes sociais geram uma sociedade articulada, cheia de comunidades virtuais, mas, contraditoriamente, efmera e anrquica. No ado, as massas revoltosas precisavam do discurso inflamado nas tribunas; agora, os sonhos da mudana se alimentam do computador. Ou no celular.

Reminiscncias me tomaram a mente. Nos anos 70, estudantes de Agronomia em Piracicaba, ns enfrentamos a prepotncia da polcia nas eatas contra a ditadura militar. Jogamos bolinhas de gude para atrapalhar o o dos cavalos, atiramos pedras nos escudos, nos esgoelamos pela democracia, todos unidos pelo utpico socialismo. Mais tarde, maduro na vida, acompanhei satisfeito a gerao de meus filhos se pintar de verde e amarelo e exigir a derrubada de um mandatrio desonroso.

A simpatia pelo protesto juvenil me desafia a convencer o conservador Z Batistela a aceitar o processo de mudana delineado nas ruas. Mas ele permanece reticente. Quando, na televiso, viu os governantes, do Rio de Janeiro e de So Paulo, felizes anunciarem a reduo do preo das agens, me telefonou: decepcionado, queria agora saber de onde sairia o dinheiro para cobrir a diferena da agem. Embora caipira, ele sabe que inexiste mgica na istrao pblica.

Governar se resume a estabelecer prioridades no gasto oramentrio. Por exemplo: apenas metade de um estdio Man Garrincha evitaria que 500 mil cabeas de gado, um quarto do rebanho, morressem esquelticas pela seca do Semirido; com a outra metade se construiriam cisternas e audes, se protegeriam inmeras reas fragilizadas pela desertificao e ampliaria a irrigao dos pequenos agricultores. A tragdia da seca nordestina, a maior dos ltimos 50 anos, ou quase despercebida na sociedade urbana que se rebela nesses dias. Ningum gritou, o campo ficou esquecido.

O dinheiro de uma reforma do Maracan, se aplicado na construo de armazns, no seguro de renda agrcola, na pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria (Embrapa), na defesa agropecuria, ajudaria de forma duradoura, no apenas durante um campeonato, no desenvolvimento nacional. Um pedao da grana consumida na Copa, se investida na estrutura da logstica nacional, facilitaria o escoamento da safra, consertaria a buraqueira das rodovias, reduziria as perdas, diminuiria o frete. Sem roubalheira.

Moral da histria para Jos Batistela: os caboclos, como ele, em vez de ficarem omissos, eternamente chorosos nos rinces, que abram os olhos, aprendam a se organizar, participar da sociedade de massas, defendendo suas demandas. Tornou-se o velho, em duas semanas, um aprendiz de ativista, com uma marca de origem: pacato como sempre foi, abomina atos de violncia. Vandalismo, jamais.

Nenhum desses conflitos envolve disputa por floresta virgem. Todos, pelo contrrio, recaem sobre terras produtivas, sob a alegao de que seriam, no ado, indgenas. No limite, o raciocnio permite englobar tambm as praias cariocas, a Avenida Paulista, a Esplanada dos Ministrios, recantos alhures, pois, afinal, tudo pertencia aos ndios at o descobrimento. Como, e a partir de quando, se comprova a "ocupao tradicional" das terras pelos remanescentes indgenas?

Aqui est o xis da questo. A legislao exige laudos antropolgicos, a cargo da Funai. O procedimento, correto em tese, tem-se desvirtuado ao se utilizar de argumentos suspeitos, pouco cientficos, para apontar "vestgios" recentes de ocupao indgena onde era imemorial seu sumio. Referindo-se a uma querela em Mato Preto, no norte gacho, o procurador do estado, Rodinei Candeia, denunciou o respectivo laudo antropolgico como "uma fraude absoluta". Essa desconfiana sobre a veracidade dos laudos antropolgicos levou o governo Dilma a propor que outros rgos, como a Embrapa e o Incra, tambm opinassem sobre a matria. A prova dos nove, necessria, irritou os indigenistas.

Percebe-se que os atuais conflitos indgenas no decorrem de nenhuma guerra de extermnio, ataque floresta ou prepotncia ruralista. Nada disso. Os ndios contemporneos no querem, exceto talvez os da Amaznia, caar com arco e flecha. Desejam terras para cultivar, pastorear rebanhos, ganhar dinheiro. Esto certos.

Errado continuar tratando ndios remanescentes como "almas puras", inimputveis perante a lei da sociedade humana. Isso precisa mudar.