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Safra no carnaval 553q3o

por Xico Graziano
10/03/2014 - 17:28

Fala-se, no Brasil, que as coisas comeam a funcionar, mesmo, somente depois do carnaval. Na economia, na poltica, na educao, leva-se tudo em banho-maria at o desfilar da escola de samba. Quando entra a quaresma, a sim vem a pauleira. Tal preceito, porm, vale na cidade. Porque no campo o ritmo diferente. Os agricultores entram no ano novo trabalhando a mil na safra. Outra folia. 133v61

Nesta altura de fevereiro, quando a turma da cidade se enfeita para curtir as ltimas horas da grande baguna carnavalesca, a turma da roa est com seus tratores zunindo na lavoura. Na avenida, hora da diverso; na terra, momento da colheita. Para aqueles, alegria na dana; para estes, festa no paiol. Curioso perceber essa diferena de timing entre o campo e a cidade.

No ado no muito distante, maior ainda era a distncia entre os dois mundos. Hoje em dia, progressivamente se aproximam. Primeiro devido ao enorme xodo populacional, que esvaziou um e inchou o outro. Segundo, porque o campo est sendo "urbanizado" - estradas de asfalto, telefonia, transporte coletivo, internet - melhorias que reduzem as distncias socioculturais. Terceiro, graas integrao produtiva que interligou a produo rural, dentro da fazenda, com a economia urbana. Antes, os agricultores moravam na sede da colnia; hoje a maioria reside na cidade. Idem com os trabalhadores rurais.

Mesmo considerando a moderna agroindustrializao, que de certo modo embaralha as atividades rurais com as urbanas, preservam-se algumas caractersticas nicas. Uma delas a intensificao do trabalho em funo da sazonalidade da produo agrcola. Existem perodos determinados de plantio, crescimento vegetal, florescimento e colheita dos gros, sequncia natural que determina um af prprio. Na criao de animais, do acasalamento ao bezerro, do pintinho ao frango, do porquinho ao pernil, h que se aguardar a hora da recompensa.

Na urbe, diferentemente, o trabalho humano se desenrola com maior uniformidade, seja nas linhas de montagem industrial, seja nos balces do comrcio. Parafusos, ou roupas, se fabricam e se vendem todos os dias, faa chuva ou sol. Arroz, ou feijo, dependem do clima para vingar. Mesmo quem labuta por conta prpria, escolhe o momento de se ocupar. No campo, o labor se conecta ao ciclo da natureza. E nessa poca de carnaval aumenta o suadouro, pois as lavouras entram na sua fase final. Dureza.

O avano tecnolgico tem modificado o ritmo de vida do agricultor. No tempo de nossos avs, havia apenas uma safra por ano. Os cereais, ou o algodo, se plantavam no incio das chuvas, logo na entrada da primavera, quando o tempo esquentava. Entre maro e abril se realizava a colheita. Desde quando, porm, o melhoramento gentico comeou a se impor, e a mecanizao avanou, surgiram novas variedades, com ciclos de produo mais curtos, algumas precoces outras tardias, adaptadas regionalmente. Mtodos de cultivo se desenvolveram, como o plantio direto, que executa a semeadura dispensando a arao e a gradeao dos terrenos, economizando tempo. A dissecao qumica, utilizada especialmente na lavoura de soja, seca rapidamente as plantas, adiantando a colheita.

Fruto dessa evoluo agronmica, os produtores aram a realizar duas e, dependendo de irrigao, at trs safras anuais. Variadas so as combinaes produtivas, que alternam as culturas e permitem elevar o rendimento da terra, melhor remunerando o capital agrrio. Mais complexa, assim, se torna a atividade agropecuria. Impulsionada pela Embrapa e rgos estaduais de pesquisa, junto com as cooperativas, crescentemente se avana tambm na integrao lavoura-pecuria, sistema onde, aps a colheita do gro, entra o pastoreio do gado. A boiada se alimenta das sobras da lavoura, misturadas com o capim, que via fertilizado pelo adubo remanescente no terreno. E o esterco animal eleva a matria orgnica do solo. incrvel.

Este fascinante mundo rural vibra num diapaso distinto da bateria das escolas de samba. Ambos aceleram as canelas nessa poca do ano. Mas enquanto os folies varam a madrugada se divertindo, os produtores rurais cedo dormem o sono profundo, acordando com as galinhas para trabalhar duro na poeira da roa. Mal conseguem, os agricultores, assistir na televiso ao desfile carnavalesco, ver as beldades e sua coreografia maravilhosa. Mesmo curiosa, a plpebra do fazendeiro teima em fechar pelo cansao do corpo.

Se os dois eventos pudessem ser comparados - o carnaval e a colheita da safra - ambos os espetculos impressionariam um jri especial isento de paixes. Nenhum povo vive sem alegria, e os brasileiros transformam o grito de carnaval num momento extraordinrio de liberao da energia positiva, danando, bebericando, paquerando, se esbaldando at exageradamente. Afora os excessos, a festa realiza um encontro bizarro da modernidade com as razes populares.

Por outro lado, nenhuma Nao sobrevive sem o rduo trabalho dos produtores rurais, que retiram da terra o sustento do povo, oferecem o emprego aos mais simples, zelam pela paisagem campestre, protegem os valores histricos. Por isso se assemelham, quanto sua importncia, as festas da avenida e do campo. Embora, na arquibancada, sobrem aplausos ao desfile, enquanto que anonimamente se executa o trabalho rural, ambos so gratificantes.

Marotos, os agricultores sabem que sem o alimento que produzem ningum teria energia para enfrentar o carnaval. Nem cachaa ou cerveja existiriam. Uma precisa da cana-de-acar, outra vem do cereal. Palmas para os produtores rurais, que sambam, e suam, na colheita da safra.