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Eles so apenas cinco no vasto mundo dos cozinheiros. Mas acharam uma forma de chamar a ateno para a carne e para o ofcio que praticam dentro de suas cozinhas, o do aougueiro. O italiano Dario Cecchini, o brasileiro Jefferson Rueda, o peruano Renzo Garibaldi, o argentino Ariel Argomaniz e o uruguaio Diego Perez Sosa se juntaram para fundar os Estados Unidos de la Carne, movimento pela valorizao do animal e do ofcio de aougueiro.
Eles querem tambm espraiar o princpio de que, depois do bicho morto, a carne deve ser toda aproveitada, sem desperdcios. Afinal, no existe um boi feito s de fil-mignon, como diz Jefferson Rueda.
A ideia de criar os Estados Unidos de la Carne surgiu num encontro, no Peru, em setembro, impulsionada pela fora da espontaneidade de Dario, que um dos mais clebres aougueiros da atualidade. E, j como uma "entidade", o grupo se rene na prxima tera-feira, 24, para um jantar nA Casa do Porco, em So Paulo.
No novo o conceito de aproveitar o animal do nariz ao rabo - h sculos se faz isso, a novidade agora que o hbito antes s populaes rurais e mais pobres cresce tambm nos restaurantes. Um dos marcos da mudana foi o lanamento, em 2004, do livro do britnico Fergus Henderson Nose to Tail Eating (comendo do nariz ao rabo), com receitas de seu restaurante St John, em Londres. Virou mania e impulsionou uma tendncia.
Da valorizao do aougueiro foi um o natural: s consegue aproveitar direito o animal quem sabe cort-lo, lidar com ele. " muito difcil ser aougueiro no Brasil, por causa dos grandes frigorficos. Hoje, o aougueiro de supermercado no desossa: tira a carne do saco", reclama Jefferson, que lembra quando, 15 anos atrs, ficou irado ao ver um aougueiro em Paris ajeitando a gravata por baixo do jaleco. "O cara estava de gravata. Essa no uma profisso menor."
Tambm no basta s saber usar a faca e o cutelo. Para Dario, cuja famlia est h 250 anos no ramo, todo bom profissional da rea no deve conhecer apenas a anatomia do bicho, mas saber de onde ele vem, como alimentado, qual a maturao da carne e como usar suas partes.
O italiano, cujo aougue-restaurante fica na Toscana, recebe interessados em aprender seus princpios e conhecimentos. Um dos mandamentos de Dario que no existe carne de primeira e de segunda. "Toda carne boa se vem de um animal criado em espao amplo, bem nutrido, que teve uma boa vida e uma morte misericordiosa." Virou mandamento do grupo.
Outro princpio entra em prtica depois da morte do animal: divulgar os cortes - principalmente os menos comuns - para educar a clientela. O argentino Ariel compara o aougueiro a uma fuso de chef e garom. "Tem de saber trabalhar o produto na cozinha e depois saber vend-lo, falar com as pessoas."
Essa foi tambm a filosofia que o peruano Renzo aprendeu de seu mestre-aougueiro nos Estados Unidos: "Num aougue, voc primeiro tem de dar informao, conquistar a confiana do cliente e, s ento, oferecer a carne".Essa turma no acha, porm, que todo chef deve ser aougueiro, mas, sim, que todos os cozinheiros devem saber trabalhar com cortes menos populares, que por falta de consumo possam estar indo para o lixo.
Uma forma de espalhar o conhecimento com a difuso de receitas, que eles explicam para os clientes. Entre eles, a troca j comeou: Ariel ensinou Jefferson a fazer um embutido de cabea de porco. Em troca, Jefferson deu a receita do codeguim. E Renzo est de olho no sushi de papada de Jefferson.
A gnese do grupo. A figura comum a eles Renzo, que conheceu Dario numa aula do italiano na Sociedade dos Aougueiros (The Butchers Guild) em So Francisco, em 2013. Naquele mesmo ano, Jefferson conheceu Dario no Attimo e, depois, Renzo em Lima, na poca do prmio 50 Best Amrica Latina. Quem falou de Renzo a Jefferson Rueda foi Gastn Acurio.
At ento o Osso, de Renzo, era s aougue e se preparava para abrir como restaurante. Com a indicao de Acurio, Renzo recebeu seu primeiro cliente, Jefferson, a portas fechadas. Ficaram amigos. Depois, Renzo conheceu Ariel. E mais tarde, encontrou Diego em So Paulo, num evento em que os dois cozinharam.
Em setembro deste ano, os amigos foram juntos ao Peru fazer uma homenagem a Dario Cecchini, que estaria no pas para uma palestra e completaria, no mesmo dia, 60 anos. Marcaram um jantar no Osso, mas a celebrao comeou na vspera: eram 9h da manh quando Diego pediu a primeira cerveja para acompanhar o banquete de embutidos, carnes, po e ovo, servido por Renzo aos amigos. Entre um gole e outro, falaram do ofcio, de receitas, cortes, de como resgatar o artesanal, a situao no pas de cada um...
At que Dario desatou a falar. "Devo proteg-los, como faz um padrinho na mfia", disse em italiano enquanto sua mulher, a americana Kim, traduzia para o ingls. Continuou falando que no tinha filhos para seguir seu legado, mas que se sentia representado pelos quatro sua frente. E, numa mistura de italiano e espanhol, bradou: "Siamo los estados unidos de la carne". Com os marmanjos s lgrimas, estava criado o grupo intercontinental.
Os aougueiros
Foto: Estado.
Dario Cecchini
O italiano de 60 anos vem de uma famlia h 250 anos no ofcio. Seu restaurante, Antica Macelleria Cecchini, fica em Panzano in Chianti, perto de Florena. Ele virou celebridade aps ser citado no livroCalor, de Bill Buford em 2007.
Foto: Tadeu Brunelli/ Estado
Jefferson Rueda
Aos 15 anos, foi enganado ao comprar picanha em sua cidade natal, So Jos do Rio Pardo (SP). Levou coxo para casa e, irritado, resolveu aprender sobre as carnes: trabalhou dois anos de graa num aougue. Hoje toca A Casa do Porco.
Foto: Estado
Renzo Garibaldi
No comeo da carreira, o peruano de 33 anos trabalhou no La Mar, de Gastn Acurio, mas largou tudo para aprender a ser aougueiro nos Estados Unidos. ou pela Frana e, de volta a Lima, abriu o Osso Carnicera h trs anos. Em 2013, inaugurou o restaurante, que lhe deu a 34 colocao no prmio 50 Best Amrica Latina deste ano.
Foto: Eugenio Mazzinghi/ Estado
Ariel Argomaniz
O argentino comeou a cozinhar aos 22 anos, em restaurantes de Buenos Aires e de Barcelona. Voltou para a sua terra natal h trs anos j com o aougue Amics em mente. Neto de donos de frigorfico, resolveu aprender o ofcio e se diz aougueiro h dois anos. Hoje, aos 35 anos, atende eventos "para matar saudades da cozinha".
Foto: Estado
Diego Perez Sosa
Formado em filosofia, o uruguaio comeou na cozinha fazendo pes. Trabalhou cinco anos com o argentino Francis Mallmann e desde maro mora em So Paulo, onde faz eventos com foco na churrasqueira. Bom conhecedor de raas e cortes, ite que seu ponto fraco no ser aougueiro, mas recebeu convite de Dario para treinar na Itlia.
Foto: Felipe Arajo/ Estado
Os mandamentos do movimento
Vida e morte.Respeitar o animal e conhecer desde o que ele come e como vive at o modo como vai morrer. Segundo Dario Cecchini, o bicho deve ser criado num espao amplo, ser bem nutrido e ter uma morte misericordiosa.
Sem sobras.No desperdiar as carnes, aproveitando o bicho todo, at as vsceras. "O bom aougueiro tem sua caixa com ossos limpinhos, sem restos de carne. Seno, no fim do ms, voc jogou dois bois fora", diz Jefferson Rueda.
Patinho feio.Estimular o consumo de cortes menos comuns entre os clientes, inclusive ensinando receitas. "Se voc s come contrafil e T-bone, voc desrespeita o animal. E o resto, vai para onde?", questiona Diego Perez Sosa. "As pessoas devem achar que tem boi s de fil-mignon", alfineta Jefferson.
Fonte: Estado. Por Ana Paula Boni. 18 de novembro de 2015.