Para os envolvidos na cadeia da pecuria bovina, frequentemente surgem conversas com informaes aterrorizantes para o setor. Algumas delas so que h um vertiginoso aumento no nmero de vegetarianos e veganos, que j h carne produzida em laboratrio de maneira muito barata, que “nerds” do Vale do Silcio esto trabalhando em alternativas que faam a humanidade parar de produzir carne, que o futuro da humanidade comer insetos e por a vai. 2766k
O objetivo deste texto trazer algumas informaes sobre cada um desses assuntos e tentar dar uma ideia mais realista da ameaa que cada um deles pode, de fato, representar para nosso setor. No final, algumas consideraes de como lidar com esse novo cenrio sem precisar fazer uso de ansiolticos, mas se reorientando em uma direo que nos leve a uma nova pecuria que, sem abrir mo da sua vocao de alimentar o mundo, produza mais em sintonia com quem manda nele, o consumidor.
ONDA VEGANA
H uma tendncia crescente do consumidor em se importar mais sobre a origem do alimento, o bem-estar animal ligado como ele produzido e seu respectivo impacto ambiental. Essas questes so confrontadas com seus valores pessoais e influenciam na deciso de consumo.
Em funo da narrativa corrente e dominante, a crena que, substituindo a carne por vegetais, a pessoa estaria ajudando a reduzir problemas ambientais e tendo uma vida mais saudvel. Alm disso, especialmente entre os mais jovens, haveria um desconforto por envolver o abate do animal e pela percepo de que os animais ariam por sofrimento durante o processo de produo.
H algum tempo tem sido detectado aumento de vegetarianismo (pessoas que no comem carne, mas podem ou no consumir ovos e leite) e sua vertente mais radical, o veganismo. O vegano bane todos os alimentos de origem animal (mel, leite, ovo, carne, etc.) do seu cardpio, bem como qualquer produto de origem animal, como o caso da seda.
Ao se ler as notcias correntes, fica a forte impresso de que existiria essa “onda vegana” mas, na verdade, ela fruto do agressivo ativismo de grupos anti-carne, sem encontrar e na realidade. As notcias que esses grupos repercutem muitas vezes so distorcidas e h muitos dados obtidos a esmo, os quais resultam em concluses no verificadas na prtica.
Recentemente, por exemplo, um levantamento afirmou que o mundo teria ado de 1% de veganos, em 2014, para 6% em 2018. Curiosamente, foi um ativista vegano mesmo quem contestou esses dados e compilou resultados recentes, entre 2013 e 2016, com quantidade estimada de veganos em vrios pases (tabela 1):
Tabela 1
Porcentagem de veganos em alguns pases em proporo da populao total
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=zMvanpjm5gM
Observando os dados da tabela 1, fica claro que aqueles 6% so totalmente improvveis. No Brasil, no h dados oficiais para o nmero de veganos, mas, em 2012, o IBOPE apurou a porcentagem de brasileiros que se declarava vegetariano como 8% da populao. Neste ltimo domingo, 20/05/2018, sai uma reportagem com o ttulo “14% dos brasileiros se declaram vegetarianos, mostra pesquisa Ibope”, no jornal “O Estado de So Paulo”. Nela foi divulgada uma nova pesquisa IBOPE em que 8% concordariam totalmente com a afirmao “sou vegetariano” e, 6%, parcialmente. Em funo de, aparentemente, o IBOPE no ter feito a mesma pergunta nas duas ocasies, fica difcil comparar os resultados. O que parece ser o caso que teramos, conforme a definio usada neste texto, 8% de brasileiros vegetarianos e veganos e 6% de uma relevante nova categoria “flex” que detalharemos mais a seguir.
O fato que a “onda vegana” est mais para uma “marola vegana”. Um dos motivos para isso que no fcil manter essa dieta ou a dieta vegetariana. Reportagem da revista Time, de 2002, trouxe dados segundo os quais 60% dos que se declaravam vegetarianos itiam ter comido pelo menos um produto de origem animal nas ltimas 24 horas. Evolumos como espcie comendo carne e, hoje, sabemos como ela foi fundamental para nosso desenvolvimento. Vale muito a pena ver a mini vdeo aula (10 minutos) do Prof. Walter Neves, paleontlogo da USP), no qual ele explica como a carne e o fogo permitiram o aumento do crebro na evoluo at o Homo sapiens.
Esse um dos motivos pelo qual a carne um alimento ao qual estamos to ligados desde cedo. Por conta dessa estreita ligao dos humanos com a carne, h grande dificuldade em manter-se longe dela e, por isso, uma nova categoria de consumidor surgiu, o flextariano. Estes adotariam uma opo menos restritiva, apenas reduzindo o consumo de carne, sem bani-la do cardpio (que tem como precursor aquele seu amigo vegetariano que s comia carne no seu churrasco, o “flextariano de ocasio” que s come a carne comprada com dinheiro de terceiros!).
Os flextarianos so os que tm maior potencial de causar reduo na demanda da carne, exatamente por ser um estilo de vida mais fcil de se levar, vel de ser adotado por um nmero maior de pessoas. Em linha com isso, h pesquisas que mostram a inteno em vrias partes do globo de reduo individual de consumo de carne.
H dois motivos para os pecuaristas no sofrerem por antecedncia com essa pesquisa: (1) Entre a inteno declarada e a ao efetiva, pode haver grande diferena e, especialmente quando comida e prazer esto envolvidos, frequentemente fica-se s na inteno mesmo; (2) H um enorme contingente de habitantes dos pases emergentes que devem se tornar vidos consumidores de carne e que, mesmo que consumam com muita parcimnia, representam um grande potencial de aumento de mercado para nossa carne.
CARNE DE LABORATRIO E HAMBRGUER BASEADO EM PLANTAS
A carne de laboratrio, ou carne-in vitro criada a partir de clulas musculares retiradas de um bovino vivo que, nutridas em meio de cultura, se multiplicam para criar tecido muscular. Um dos grupos mais avanados da Universidade de Maastricht, na Holanda. Ainda assim, eles preveem um produto comercial apenas para daqui uma ou duas dcadas! Para tal, eles ainda precisam achar um substituto para o meio de cultura (soro fetal bovino) e uma forma vivel de produzir em grande escala.
Por fim, essa tecnologia ainda precisar dos animais como doadores de clulas e do soro, o que vai um pouco contra a motivao dos grupos de interesse nesta novidade. H uma ideia de fazer kits para a pessoa produzir sua “carne-in vitro” em casa, mas seriam vrios dias de cultivo at ter o suficiente para uma refeio, ou seja, uma opo pouco atraente para geraes cada vez menos dispostas a esperar.
A alternativa carne bovina que est em voga nos EUA so os hambrgueres baseados em plantas (HBP). A ideia desta alternativa desenvolver um simulacro de hambrguer de carne com base em ingredientes vegetais e tecnologia de ponta. H vrias “startups” em busca desse HBP, mas duas so as grandes estrelas do mercado: A Impossible Foods (Comidas impossveis) e a Beyond Meat (Alm da Carne), ambas sediadas no Vale do Silcio.
Algumas informaes sobre elas:
Impossible Foods: Pat Brown, cientista fundador, ex-professor na faculdade de medicina de Stanford, deseja eliminar a necessidade de criar animais at 2035. Do laboratrio ao produto, 300 milhes de dlares em capital de risco foram investidos. No melhor estilo “cientista-maluco”, ele considera a indstria de produo animal pr-histrica e a mais destrutiva do planeta e quer resolver o problema tecnologicamente. O grande feito do seu laboratrio foi rearranjar molculas de vegetais de forma a imitar a textura e o sabor da carne dos hambrgueres de verdade. O processo usa leveduras transgnicas sobre a protena de soja que resultam em leghemoglobina. esse composto que d a sensao do sabor da carne. Outros ingredientes principais so a protena de trigo e a protena de batata. A Impossible Foods inaugurou uma fbrica com capacidade para produzir quase 500 t/ms de hambrgueres para suprir 200 restaurantes.
Beyond Meat: Eathan Brown, fundador, assim como o outro Mr. Brown (no so parentes!), acredita que faz um bem humanidade ao dar alternativa produo de carne bovina, vinculando as principais doenas com o consumo de carne. No seu caso, so rearranjadas molculas da ervilha para dar a sensao da fibra da carne. Ela j tem seus produtos em todos os EUA, em mais de 3,5 mil restaurantes e mercados.
Em comum, os HBP de ambas so muito caros, custando at cerca de seis vezes mais do que o verdadeiro. Os produtores de HBP defendem que isso uma questo de escala e que, medida que ela aumentar, essa diferena dever cair bastante, mas h ainda muita dvida que isso acontea de fato.
Um dos pontos cruciais para grande aceitao o quanto esses HBP sero capazes de satisfazer consumidores esperando o verdadeiro gosto de carne. Relatos de pessoas que experimentaram esses HPB que eles at podem ar pelo produto real, mas foi revelador ver uma dessas pessoas ao experimentar comentar: “ bom, mas o queijo (que vai junto no lanche) ajuda muito!”.
Seja a “carne- in vitro” ou os HBP, temos aqui apenas uma substituio de um tipo de produto, base de carne moda, para um nicho de mercado que acredita nas “vantagens” do produto e tem recursos sobrando para pagar o preo extra. Enfim, apesar deles poderem causar uma competio exatamente na estratgica sada de carne de dianteiro, improvvel que, pelo menos em curto prazo, causem um estrago muito significativo. Alm disso, vai levar um tempo para fazerem frente a uma bela picanha ou costela.
INSETOS COMO FONTE DE PROTENA NO LUGAR DA CARNE:
Em alguns lugares no mundo, insetos fazem parte da cultura alimentar, por vezes sendo considerados verdadeiras iguarias. Na maioria dos locais, porm e, em especial, na cultura ocidental a ideia de comer insetos causa repugnncia. Tive a oportunidade de experimentar, na Universidade da Califrnia em 2015 (figura 1), uma degustao de insetos em vrias formas. Em algumas delas era possvel reconhecer o perfil do bicho, mas, na maioria, no, pois mais comum apenas usarem a farinha feita pela moagem do corpo do animal (Para inveja de quem trabalha na pecuria bovina, o rendimento de carcaa aqui de 100%!).
Figura 1.
Foto de convite para fazer uma degustao de insetos no Campus de Davis da Universidade da Califrnia
Foto: acervo pessoal do autor
Independente da forma consumida, a principal percepo a que, pelo menos os insetos usados para consumo humano e que experimentei, eles tm um sabor bastante neutro, sendo o gosto proporcionado por algum acompanhamento, como o queijo que recobria uma larva seca ou o chocolate que recobre a barra com a farinha misturada com gengibre. No Brasil, no estamos “comendo mosca” nessa matria e, no nosso Instituto Federal de Coxim-MS, est sendo desenvolvida uma linha de pesquisa de criao de insetos para consumo humano. O coordenador das pesquisas o Prof. Ramon de Minas, que agrnomo e bilogo, e seu trabalho foi alvo de reportagem do Globo Rural.
Mas o consumo humano no deve ser a principal destinao dos insetos. Tambm na UCDavis, nessa mesma poca, numa palestra do chefe de pesquisas da Mars Foodservice, uma das maiores produtoras de alimentos do Mundo, ele comentou que para as prximas dcadas espera-se um “Vazio Proteico” (“Protein Gap”) que dever ser mitigado pelo uso de insetos cultivados em fazendas como matria prima para raes. Essa fonte alternativa deve ser especialmente usada na aquicultura, mas tambm por aves e sunos.
O mesmo palestrante comentou um caso interessante de uma “startup” chamada AgriProtein que realiza, desde 2015, a bioconverso de resduos orgnicos em larvas de moscas que so usadas para alimentao animal. Nessa poca, ela j estava com uma operao em uma grande cidade sul-africana, quando teve suas operaes interrompidas por questes de legislao sanitria local. Ocorre que, o poder pblico da cidade estava muito interessado no servio que ela prestava em reduzir o problema com o lixo orgnico da cidade. Esse interesse no servio ambiental prestado pela empresa ajudou com que essas arestas fossem aparadas e a AgriProtein expandiu suas operaes para mais cidades e j tenta cruzar as fronteiras. Nas suas duas maiores fazendas, na Cidade do Cabo, ela coleta mais de 100 t de lixo orgnico que produzem 20 t de larvas. O resduo do processo hmus, que aumenta o faturamento. Quando as larvas atingem o tamanho de colheita, so lavadas, secas e comprimidas para extrair leo. O restante modo, embalado e vendido s fbricas de rao, num valor imbatvel em relao s fontes tradicionais (farinha de peixe e soja).
O desafio legal, assim como ocorreu com a AgriProtein em seu pas, ainda um empecilho para o aumento da atividade. A Comunidade Europeia (CE) tem uma legislao que probe alimentos descartados com carne para animais de produo, incluindo insetos, bem como bane farinhas de insetos na alimentao animal. Apenas para rao de animais de estimao permitido o uso. Essa posio da CE tem influenciado muitos pases no europeus, segundo o artigo de Andreas Stammer publicado na revista “Science & Society”, pesquisador suo da rea ambiental.
TEMOS ALGO A FAZER NESSE MUNDO EM RPIDA TRANSFORMAO?
Uma das grandes perguntas do pecuarista nesse cenrio mutante “Ento eu tenho que mudar meu jeito de produzir s por causa dessas pessoas cheias de vontade?”. A resposta (cnica) : “Apenas se quiser que a pecuria continue firme e forte!”. Na verdade, uma questo de mudar voluntariamente agora, de forma programada e inteligente, ou, talvez, ser obrigado a mudar pela fora das circunstncias de mercado mais frente.
A primeira e mais importante providncia respeitar as escolhas pessoais, sem tentar achar defeitos no fato da pessoa ser vegetariana, vegana ou seja l o que for. Em adio a isso, no cair na armadilha de desperdiar seu tempo em responder s campanhas anti-pecuria desses grupos, cujo resultado tem sido apenas dar mais visibilidade para as injrias que, em funo de anos de discurso anti-pecuria, acabam transformando os detratores da carne bovina em vtimas, e os produtores, mesmo que cobertos de razo, em viles.
A questo se agrava por estarmos na era da ps-verdade que, conforme o dicionrio Oxford define “relacionar ou denotar circunstncias nas quais os fatos objetivos tm menos influncia em formar a opinio pblica que os apelos emoo e crenas pessoais”. Isto tomam-se decises baseadas em emoo, preferncia, lealdade e tribalismo, ignorando os fatos, dados concretos ou a prova cientfica.
Por isso que, na maioria das vezes, intil tentar mostrar para um vegano dogmtico, dados contra alguns de seus mantras, mesmo que insuspeitos e da melhor procedncia, pois ele est programado apenas a aceitar o que refora sua crena.
Uma tcnica para furar o bloqueio deste tipo de situao tentar achar algum ponto comum entre as partes para comear a conversa. Por exemplo, o pecuarista elogiar o respeito do vegano pelos animais e dar exemplos que, na fazenda dele, h respeito aos animais tambm. Nenhuma garantia que isso mude a atitude do interlocutor, mas aumenta muito a probabilidade de, pelo menos, haver a manuteno de conversa civilizada que permita um aprofundamento do conhecimento da realidade de lado a lado. Outros assuntos potencialmente convergentes estariam relacionados questo ambiental, responsabilidade social e outros aspectos de bem-estar animal.
Para que a proposta de tentar “destravar” o dilogo entre opostos seja efetiva, todavia, ajuda muito ser baseada em algo mais do que palavras vazias, mas atitudes concretas. Assim, desejvel que o produtor se preocupe com essas questes, mesmo porque ele mesmo ser o principal beneficirio: ter uma propriedade saudvel ambientalmente ajuda na produo (biodiversidade que ajuda a controlar pragas, menor perda de solo por eroso, maior reteno de gua, etc.), usar tcnicas de bem estar animal reduzem riscos de contuso dos animais e acidentes, bem como costumam aumentar o desempenho individual e, por fim, a responsabilidade social, alm de evitar sanes legais, ajuda a reter uma mo-de-obra de melhor qualidade e que trabalha mais satisfeita.
Enfim, as ameaas parecem no ser assim to grandes, mas bom que o ambiente seja sempre monitorado, que se entendam as motivaes delas prosperarem e que a cadeia da carne bovina se movimente no sentido de, sabiamente, se adequar aos anseios dos consumidores.
Por isso, se para voc coisas como boas prticas de produo, sustentabilidade, intensificao sustentvel e bem estar animal soam distantes, uma boa hora para rever conceitos e tentar ver o que se pode ganhar com elas hoje, para que a pecuria continue a produzir protena animal de alta qualidade, de fontes alimentares que no competem com o humano, mesmo em reas marginais, sem aptido agrcola e que continue ajudando a se obter melhores resultados de produo agrcola na integrao lavoura-pecuria. Tudo isso, num horizonte temporal a se perder de vista.
Agradeo a leitura atenta, correes e sugestes dos colegas Maxwell Parrela Andreu, Gilberto Romeiro de Oliveira Menezes, Karem Guimaraes Xavier, Rosangela M. Simeo Resende e Mateus Figueiredo dos Santos.