Imagine que exista um alimento cujo consumo seja altamente desejvel e que, exatamente por isso, seja consumido acima da quantidade recomendada. Que, fruto dessa situao, ele seja considerado um problema de sade pblica, sem contar as extensas reas em que sua produo realizada, com os esperados custos ambientais de sempre. Nesse cenrio, algum oferece um produto alternativo para substitui-lo que promete ser a soluo para todos esses problemas. 58r2r
Isso tem ocorrido nos ltimos tempos, com bastante notcias sobre a carne de laboratrio. Em geral, so informaes muito otimistas, a ponto de convencerem algumas pessoas que a pecuria ser, em breve, uma atividade obsoleta e dispensvel.
Abaixo, dez perguntas e respostas que visam dar uma perspectiva mais prxima realidade. Ela visa ratificar e complementar um artigo publicado no ms ado como Boletim do Centro de Inteligncia da Carne da Embrapa sobre esse mesmo assunto.
1)Carne de laboratrio pode ser chamada de carne?
Sim, mas sem consenso. Tecido muscular animal ou humano como a maioria dos dicionrios definem a carne. Como a carne de laboratrio aquela produzida a partir de uma clula que originalmente provm de um animal e que cultivada em um meio de cultura, gerando milhes de outras clulas que formam estruturas semelhantes ao msculo original, ela estaria dentro do escopo da definio usual. Todavia, no Brasil, h um projeto de lei (Projeto de Lei 5499/2020) em tramitao no Congresso que visa impedir o uso, tanto para produtos que imitam carne usando vegetais, como da carne de laboratrio, mas ao “proibir a utilizao da palavra ‘carne’ e de seus sinnimos para anunciar ou comercializar alimentos que no contenham, em sua composio, proporo mnima de tecidos comestveis de espcies de aougue”, parece ser abrangente o suficiente apenas para ser aplicada s alternativas baseadas em plantas. O Uruguai j aprovou lei semelhante, mas parece ter a mesma limitao de sua congnere brasileira e, a rigor, deixa a brecha para a carne cultivada.
Assim, so usados variados termos para se referir a ela: “carne de laboratrio”, “carne celular”, “carne in vitro”, “carne limpa”, “carne sinttica”, “carne artificial”, entre outros, mas em textos mais cientficos tem prevalecido o termo “carne cultivada”. O termo a ser usado tem uma grande importncia para sua aceitao, sendo claro que entre “carne artificial” e “carne limpa”, por exemplo, a um nome que a favorece e outro que a prejudica.
2)H necessidade de animais vivos para produzir carne de laboratrio?
Sim. O processo se inicia com a retirada, atravs de uma bipsia, de uma poro de tecido de um animal vivo. Assim, para as pessoas que evitam comer carne por questes ligadas ao uso de animais de produo, esse um dos primeiros pontos em que a carne de laboratrio no seria atraente para esse grupo. Por isso, h esforo para no depender dessa etapa. As solues at agora vislumbradas, contudo, se chocam com a tendncia dos consumidores de quererem sempre o produto mais prximo possvel do alimento natural
3)H necessidade de abate de animais para produzir carne de laboratrio?
Sim. O meio de cultura usado para o cultivo das clulas ainda o soro fetal bovino (SFB), ou seja, a carne de laboratrio ainda depende desse insumo para a produo. Existe um grande esforo para meios de cultura alternativos, sendo esse um dos maiores desafios para escalar a produo da carne em laboratrio.
4)Onde est a carne de laboratrio no mundo?
Em todo lugar. Iniciativas para produo de carne de laboratrio esto espalhadas por todos os continentes e a partir de clulas de diversas espcies de animais, incluindo a australiana VOW, que trabalha com clulas de canguru. A Europa tem para si o anncio do primeiro hamburger de laboratrio em 2013, pelo grupo do biologista vascular Mark Post, da Universidade de Maastricht na Holanda, vrias iniciativas de financiamento pblico e vrias empresas. Nos EUA, investidores do Vale do Silcio tm feito grandes apostas nessa alternativa, com destaque para Bill Gates. Uma das empresas que tem conseguido maior exposio na imprensa a Aleph, de Israel. Na Amrica do Sul, temos a Craveri Laboratories, na Argentina, cuja diviso BIFE (Bio Ingeniera en la Fabricacin de Elaborados) investe em carne de laboratrio. No Brasil, desde o ano ado, na Universidade Federal do Paran, foi criado o curso “Introduo Zootecnia Celular” e, recentemente, a BRF anunciou que vai investir tambm nessa linha, em parceria com a Aleph, prometendo produtos no comrcio em 2024. Cingapura foi o primeiro pas a conceder registro a um produto com 70% de carne cultivada de frango, feito pela empresa americana Eat Just.
5)Por que ainda no h produo em escala industrial?
Porque bastante complicado escalar. Tem havido muito espao para a carne de laboratrio na imprensa e as notcias fazem crer que estaria bastante avanada sua produo e logo teremos corredores inteiros dessas opes nos supermercados. A realidade bem outra, pois inexiste no mundo produo em escala industrial. Os desafios para conseguir ar de produo em escala experimental para industrial so enormes e ainda dependem de alguns os nada triviais: (i) conseguir um meio de cultura alternativo que seja (bem) mais barato que o soro fetal bovino; (ii) produzir outros insumos necessrios, como protenas promotoras de crescimento, de forma economicamente vivel; (iii) fazer com que os processos, j complicados de serem bem sucedidos em laboratrios, mantenham-se viveis em grande escala e (iv) provar que o produto produzido seguro e que tem mercado.
6)Qual a expectativa de fatia de mercado para a carne de laboratrio?
Esse um ponto bastante indefinido. Um relatrio da consultoria Kearney faz uma projeo bastante otimista que, j em 2030, 10% do mercado mundial de carne seria atendido por carne de laboratrio e que, em 2050, 35% da carne consumida no mundo seria dessa fonte. Em funo de ainda no existirem plantas industriais e sua viabilidade mercadolgica no ter sido colocada a toda prova, h dvida se as empresas do setor conseguiro entregar produtos consumveis em grande quantidade em curto prazo. Analistas de mercado acreditam que ainda sero necessrias de trs a cinco dcadas para que haja oferta firme no varejo desse tipo de produto.
7)Sero necessrias novas regulamentaes para a carne de laboratrio?
Certamente. Esse outro ponto que, apesar de j estar sendo discutido para se delinear o arcabouo legal por agncias reguladoras em alguns pases, a regulamentao depende que as formas de produo em escala estejam bem definidas para que se possa identificar quais os pontos crticos da produo. O que ilustra bem isso que at mesmo o tempo de prateleira s poder ser determinado de fato com material proveniente da produo real, em grande escala. Ao mesmo tempo, h preocupaes bem maiores, como a de, por envolver trilhes de divises, alguma desregulao das linhas celulares possa ocorrer com potenciais efeitos desconhecidos na estrutura muscular e, eventualmente, no metabolismo e na sade humana. Pela complexidade do tema, ele demandar um trabalho rduo e extremamente tcnico dos responsveis por esse escrutnio.
8) possvel afirmar que a carne de laboratrio ter realmente um impacto ambiental pequeno?
Ainda cedo. Aqui voltamos a mesma questo de inexistir plantas em escala industrial, que fazem com que todos os dados usados nas estimativas sejam baseados apenas em modelos de como funcionariam. Em um interessante webinar, realizado pelo Grupo de Pesquisa e Anlise de Carne, da Universidade de Londrina, o Dr. Jean-Franois Hocquette (INRAE, Frana), comenta sobre trs boas revises, em que a mais antiga daria vantagem para a carne de laboratrio, mas, outras duas mais recentes, mostrariam o contrrio. O Dr. Hocquette conclui que, no final das contas, por no termos sistemas reais de produo da carne cultivada, todos os estudos se baseiam muito mais em suposies e que comparaes definitivas dependero de sistemas reais bem definidos.
9)A carne de laboratrio ser nutricionalmente equivalente?
Provavelmente, no. Nesse ponto h um lado favorvel e outro que levanta dvidas quanto equivalncia. Do ponto de vista de manipulao da composio nutricional, os entusiastas da carne cultivada apontam que bem mais fcil fazer enriquecimentos nutricionais em um produto industrial. H, porm, dois fatos que pesam em favor do produto natural: (i) a forma com que o nutriente est presente no alimento natural muitas vezes influi bastante no seu aproveitamento (por exemplo, o ferro na forma heme muito mais disponvel que na forma mineral) e (ii) h nutrientes que ocorrem em pequenas quantidades (micronutrientes) e que s ocorrem por conta do metabolismo do animal como, por exemplo, o cido bovnico. Esse cido graxo, que ocorre principalmente em ruminantes por ser decorrente do metabolismo ruminal, foi reconhecido como biologicamente ativo apenas no final do sculo XX, sendo que seus impactos positivos sade humana ainda nem foram totalmente compreendidos. semelhana do cido bovnico, nada garante que no estejamos perdendo outros compostos naturalmente presentes na carne, os quais no reconheamos ainda sua real importncia nutricional.
10)Quem vai comer carne de laboratrio?
Sabe-se mais quem no deve comer: vegetarianos e veganos. De todas essas perguntas, essa a mais importante, pois, sem consumidores, o fracasso de um novo produto certo. No caso da carne de laboratrio, o pblico-alvo parece ser, principalmente, pessoas que se oponham necessidade do abate dos animais e, tambm, aquelas que se preocupam com a pegada ambiental da pecuria (infelizmente, frequentemente em funo de informaes totalmente distorcidas).
Como qualquer novidade, h desconfiana do consumidor quanto a seu consumo ser seguro, mas alguns dados, inclusive brasileiros, mostram razoveis ndices de aceitao. Os dados brasileiros, com autores tambm da equipe do curso de Zootecnia Celular mencionado acima, mostram que cerca de 4 entre 10 entrevistados de Curitiba e ville respondem positivamente pergunta se comeriam carne de laboratrio, com outros 2 desses 10 afirmando que eventualmente podem consumi-la.
Contudo, dados de pesquisa feitos na Europa mostram muito pouca disposio do consumidor em pagar a mais pela carne de laboratrio. Isso deve ser uma grande preocupao por dois motivos: (i) a carne de laboratrio deve ser mais cara que a carne convencional e (ii) nesse tipo de resposta, mesmo quando expressa a inteno de pagar a mais, geralmente, na condio real, quando efetivamente tem que colocar a mo no bolso, a maioria das pessoas acaba ficando com a alternativa mais em conta.
Por fim, ada a barreira da novidade e do preo, se a experincia sensorial no for inteiramente satisfatria e o consumidor no desejar repetir a experincia, fim de linha para a carne alternativa. Nesse caso, faltam dados de pesquisa para qualquer afirmao, restando se basear na feio dos reprteres que experimentam amostras em frente as cmeras, algo um tanto arriscado para tomar como base.
Consideraes finais
No incio do texto, a situao descrita no se referia a carne, mas ao acar. Foi em 1879, quando foi criado o primeiro adoante artificial, a sacarina. Depois da sacarina, muitos outros adoantes surgiramie vrios deles disputam mercado, mas, quase 150 anos depois, nenhum deles acabou com a indstria do acar. Tampouco, qualquer uma delas rivaliza com o produto original, que ainda a preferncia dos consumidores. Se isso ocorre com a sacarose, composta apenas de uma molcula de glicose e outra de frutose ligadas entre si, o que dir da complexidade do tecido muscular ou de um corte crneo, como uma picanha ou uma costela?
Os adoantes, todavia, permanecem como um bom negcio, pois tm seu espao no mercado, seja para as pessoas que no possam consumir o acar ou por aquelas que, por qualquer motivo ou ocasio, prefiram evit-lo. Talvez, daqui a 100 anos, tenhamos a mesma situao para a carne convencional e suas alternativas.
https://www.cicarne.com.br/wp-content/s/2021/02/Boletim-CiCarne-38-2021.pdf
We will still eat meat in the future? https://www.youtube.com/watch?v=JKZo_SDHF3Y&t=236s
iCiclamato, esteveosdeo, aspartame, sucralose, neotame e outros