O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3865, proposta pela Confederao Nacional da Agricultura e Pecuria do Brasil – CNA, onde questionava algumas expresses de artigos da Lei da Reforma Agrria, os artigos 6o. e 9o. da Lei Federal no. 8.629/1993, tratando da propriedade produtiva e o cumprimento da funo social. 196xg
necessrio relembrar o que a funo social da propriedade e se este conceito subjetivo ou possui critrios objetivos.
A funo social da propriedade um princpio previsto na Constituio Federal de 1988, que vem de uma legislao ainda mais antiga, o Estatuto da Terra, de 1964, que determina que a propriedade deve cumprir uma funo social, ou seja, no pode ser utilizada de forma que prejudique a coletividade e o meio ambiente, um conceito que engloba utilizao da terra, preservao do meio ambiente, desenvolvimento socioeconmico e observncia dos direitos dos trabalhadores.
Este princpio traz critrios objetivos, cuja verificao de competncia exclusiva do Poder Pblico, por meio de vistoria em processos istrativos do INCRA – Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria que, por sua vez, utiliza critrios de avaliao previstos em lei, solicita documentos e informaes, oferecendo oportunidade de defesa aos proprietrios, podendo resultar em desapropriao do imvel rural improdutivo para sua destinao reforma agrria.
Os critrios j comentados compem o grau de eficincia e o grau de utilizao do imvel rural, medindo seu desempenho em relao capacidade produtiva e uso da rea disponvel, informaes que posteriormente so disponibilizadas nos cadastros fundirios e constam no Certificado de Cadastro de Imvel Rural (CCIR) de cada imvel rural, documento emitido pelo INCRA que se complementa com licenas ambientais, pagamentos de impostos, relatrios de vistoria e laudos tcnicos etc.
No julgamento da Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3865, o Supremo Tribunal Federal decidiu que propriedades rurais produtivas que descumpram a funo social esto veis de desapropriao para reforma agrria, onde o relator Ministro Edson Fachin considerou que o artigo 184 da Constituio Federal autoriza a desapropriao por interesse social do imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social.
Art. 184. Compete Unio desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social, mediante prvia e justa indenizao em ttulos da dvida agrria, com clusula de preservao do valor real, resgatveis no prazo de at vinte anos, a partir do segundo ano de sua emisso, e cuja utilizao ser definida em lei. [...]
A interpretao para correta, porm foi feita de maneira isolada e desconexa com os demais dispositivos da prpria Constituio Federal, j que no artigo seguinte, o artigo 185, inciso II e seu pargrafo nico, orientam o seguinte:
Art. 185. So insuscetveis de desapropriao para fins de reforma agrria:
I - a pequena e mdia propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietrio no possua outra;
II - a propriedade produtiva.
Pargrafo nico. A lei garantir tratamento especial propriedade produtiva e fixar normas para o cumprimento dos requisitos relativos sua funo social.
A idealizao da reforma agrria, diferentemente do que se apresenta em atuais discusses ideolgicas deturpadas no simplesmente a distribuio de terras, por uma utpica busca por distribuio igualitria de terras entre pessoas, saibam utiliz-la ou no.
A reforma agrria surgiu com o propsito de aumento de produo, consequentemente, o abastecimento alimentar, motivo pelo qual foi dado tratamento especial propriedade produtiva, o que se comprova pelas doutrinas agraristas ao afirmar tratamento especial que s pode consistir num regime jurdico mais benfico do que o previsto para as propriedades tidas por no satisfatoriamente produtivas.
Se a ideia fosse de desapropriao de imvel produtivo que no cumprisse sua funo social, no haveria qualquer necessidade ou sentido na redao do artigo 185, inciso II e seu pargrafo nico da Constituio Federal.
A legislao interpretada pelo Ministro Relator j foi regulamentada em 1993 pelo artigo 6 da Lei da Reforma Agrria (Lei Federal n 8.629/1993) ao esclarecer o seguinte:
Art. 6 Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econmica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilizao da terra e de eficincia na explorao, segundo ndices fixados pelo rgo federal competente.
Os demais pargrafos e inciso deste mesmo artigo orientam que o grau de utilizao da terra dever ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relao percentual entre a rea efetivamente utilizada e a rea aproveitvel total do imvel; e que o grau de eficincia na explorao da terra dever ser igual ou superior a 100% (cem por cento) de acordo com a sistemtica delimitada em seus incisos.
Art. 6 [...]
1 O grau de utilizao da terra, para efeito do caput deste artigo, dever ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relao percentual entre a rea efetivamente utilizada e a rea aproveitvel total do imvel.
2 O grau de eficincia na explorao da terra dever ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e ser obtido de acordo com a seguinte sistemtica:
I - para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos ndices de rendimento estabelecidos pelo rgo competente do Poder Executivo, para cada Microrregio Homognea;
II - para a explorao pecuria, divide-se o nmero total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo ndice de lotao estabelecido pelo rgo competente do Poder Executivo, para cada Microrregio Homognea;
III - a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela rea efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficincia na explorao.
3 Considera-se efetivamente utilizadas:
I - as reas plantadas com produtos vegetais;
II - as reas de pastagens nativas e plantadas, observado o ndice de lotao por zona de pecuria, fixado pelo Poder Executivo;
III - as reas de explorao extrativa vegetal ou florestal, observados os ndices de rendimento estabelecidos pelo rgo competente do Poder Executivo, para cada Microrregio Homognea, e a legislao ambiental;
IV - as reas de explorao de florestas nativas, de acordo com plano de explorao e nas condies estabelecidas pelo rgo federal competente;
V - as reas sob processos tcnicos de formao ou recuperao de pastagens ou de culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e devidamente comprovadas, mediante documentao e Anotao de Responsabilidade Tcnica.
4 No caso de consrcio ou intercalao de culturas, considera-se efetivamente utilizada a rea total do consrcio ou intercalao.
5 No caso de mais de um cultivo no ano, com um ou mais produtos, no mesmo espao, considera-se efetivamente utilizada a maior rea usada no ano considerado.
6 Para os produtos que no tenham ndices de rendimentos fixados, adotar-se- a rea utilizada com esses produtos, com resultado do clculo previsto no inciso I do 2 deste artigo.
7 No perder a qualificao de propriedade produtiva o imvel que, por razes de fora maior, caso fortuito ou de renovao de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo rgo competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficincia na explorao, exigidos para a espcie.
8 So garantidos os incentivos fiscais referentes ao Imposto Territorial Rural relacionados com os graus de utilizao e de eficincia na explorao, conforme o disposto no art. 49 da Lei n 4.504, de 30 de novembro de 1964.
Importante tambm comentar que devem ser devidamente cadastradas aquelas reas “no aproveitveis” da propriedade rural, assim consideradas pelo artigo 10 da mesma Lei da Reforma Agrria:
Art. 10. Para efeito do que dispe esta lei, consideram-se no aproveitveis:
I - as reas ocupadas por construes e instalaes, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reproduo e criao de peixes e outros semelhantes;
II - as reas comprovadamente imprestveis para qualquer tipo de explorao agrcola, pecuria, florestal ou extrativa vegetal;
III - as reas sob efetiva explorao mineral;
IV - as reas de efetiva preservao permanente e demais reas protegidas por legislao relativa conservao dos recursos naturais e preservao do meio ambiente.
V - as reas com remanescentes de vegetao nativa efetivamente conservada no protegidas pela legislao ambiental e no submetidas a explorao nos termos do inciso IV do 3 do art. 6 desta Lei.
Portanto, uma ousada inovao do STF, demandando cada vez mais cautela do produtor rural com relao ao preenchimento dos cadastros obrigatrios e fundirios de seu imvel rural, para efetivamente garantir que no seja surpreendido com uma possvel desapropriao para reforma agrria em interpretaes equivocadas e transversais.
A prpria Lei da Reforma Agrria, em seguida, traz algumas garantias para no permitir desapropriao de imveis produtivos que estejam cumprindo cronograma estabelecido por tcnico profissional habilitado e responsvel.
Art. 7 No ser vel de desapropriao, para fins de reforma agrria, o imvel que comprove estar sendo objeto de implantao de projeto tcnico que atenda aos seguintes requisitos:
I - seja elaborado por profissional legalmente habilitado e identificado;
II - esteja cumprindo o cronograma fsico-financeiro originalmente previsto, no itidas prorrogaes dos prazos;
III - preveja que, no mnimo, 80% (oitenta por cento) da rea total aproveitvel do imvel seja efetivamente utilizada em, no mximo, 3 (trs) anos para as culturas anuais e 5 (cinco) anos para as culturas permanentes;
IV - haja sido aprovado pelo rgo federal competente, na forma estabelecida em regulamento, no mnimo seis meses antes da comunicao de que tratam os 2o e 3o do art. 2o.
Pargrafo nico. Os prazos previstos no inciso III deste artigo podero ser prorrogados em at 50% (cinquenta por cento), desde que o projeto receba, anualmente, a aprovao do rgo competente para fiscalizao e tenha sua implantao iniciada no prazo de 6 (seis) meses, contado de sua aprovao.
Portanto, mesmo que tal legislao no tenha acompanhado as atuais prticas agropecurias e normativas tcnicas, interessante que o produtor rural faa o uso de projetos e cronogramas tcnicos, registrando a produo realizada na propriedade, periodicamente registrando laudos tcnicos, aumentando a segurana jurdica e deixando evidente que propriedades rurais devem buscar um nvel de organizao e profissionalizao cada vez mais elevado.